“Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa. Ouvindo isso, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta” ( 1 Rs 19,13a). “Assim que subiram no barco, o vento se acalmou. Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: Verdadeiramente, tu és o filho de Deus” (Mt 14,33).
Duas cenas de calma e serenidade quase paradisíacas, que acabam de concluir a atribulada travessia do deserto por parte do profeta Elias, e a longa noite dos discípulos, cheia de angústia ao lutar contra as ondas do lago agitadas pela tempestade. Apesar desse quadro, os protagonistas das duas histórias estão gozando tranqüilidade e paz profunda: dom surpreendente que acompanha o inesperado e íntimo encontro com o Senhor, que até pouco antes parecia estar ausente, surdo e mudo perante os seus gritos de medo e de ajuda.
Por um lado as cenas marcam o cume da condescendência de Deus para com o seu profeta Elias, e a intensa manifestação da senhoria de Jesus sobre os agitados acontecimentos da história, para com os discípulos. Por outra parte, a mudança radical do cenário marca o ponto de chegada do longo processo de conversão do profeta ao Senhor, assim como do crescimento da frágil fé de Pedro e dos demais discípulos. O medo paralisante de pouco antes se traduz na solene profissão de fé que proclama Jesus “Filho de Deus”. Quantas vezes Jesus, ao encerrar o encontro com um homem ou com uma mulher que vai em busca dele, confiante em sua ajuda, declara: “Vai, a tua fé te salvou!” (cf. Mc 5,34; Mt 15, 28). O Senhor abre para nós o mesmo trilho!
A profissão de fé dos discípulos nos coloca em cheio na plena luz da páscoa; páscoa que celebramos hoje, assim como em todo domingo, para que ilumine e oriente a partir de uma perspectiva interior nossos dias. Eles se sucedem uns aos outros, aparentemente iguais na repetição da rotina, e não raramente provados por feridas e fatigas sem saída. A luz do Ressuscitado os resgata do “não sentido”, e os faz lugar do possível encontro com o Senhor.
A Igreja nos acompanha com o dom da Palavra de Deus e com o pão de vida da Eucaristia, para que nos tornemos companheiros da longa trajetória interior de Elias e dos discípulos, partilhando com eles a mesma força transformadora da fé e a intimidade para com o Senhor, que caracterizam toda autêntica relação com ele.
O breve trecho do 1 livro dos Reis, proclamado na primeira leitura, nos apresenta apenas a conclusão da complicada história humana e interior de Elias, o primeiro dos profetas históricos de Israel. Ele é apresentado pela mesma escritura do AT e do NT, como modelo de tantos homens de Deus, chamados por ele a tornar-se seus amigos e corajosas testemunhas, na defesa da justiça em prol dos pobres, na recuperação das exigências da aliança estabelecida por Deus com Israel, na espera da vinda do Messias que vai restabelecer as condições para cumprir a originária aliança.
A compreensão profunda da extraordinária experiência de Deus, vivenciada pelo profeta na gruta do monte Horéb, pressupõe uma leitura atenta e partícipe da fascinante aventura humana e espiritual de Elias, narrada nos capítulos 18-19 do 1 livro dos reis. À sua luz se compreende a colocação desta história em conjunção com a narração da noite de Jesus mergulhado em profunda oração na montanha, e sua ida em socorro dos discípulos em dificuldade dentro do barco no meio da tempestade. Na complexidade das intrigas e das paixões humanas, se desvela a secreta pedagogia com que Deus dirige a história, chama e forma seus profetas para guardar e alcançar o cumprimento do seu projeto de vida.
Talvez seja útil lembrar alguns pontos salientes deste trajeto interior de Elias, para iluminar um pouco nosso próprio caminho existencial. Poderia nos ajudar também a entender porque a sua figura se tornou tão emblemática na tradição da própria Escritura, na tradição judaica posterior, naquela cristã, sobretudo na sua vertente mística, e até mesmo na tradição muçulmana. Cada uma delas se reconhece num ou no outro aspecto da sua experiência espiritual, como num espelho.
No momento mais alto da revelação da identidade e da missão de Jesus na transfiguração, ele aparece dialogando sobre o cumprimento da sua tarefa de messias sofredor com Moisés e Elias, os dois eixos do projeto salvífico de Deus na aliança, que está para se realizar na sua morte e ressurreição (cf Lc 9, 30-31).
O profeta, com zelo ardente pela pureza da fé de Israel com a violência de todo fundamentalista religioso (1 Rs 18,20-40), foi progressivamente transformado pelo próprio Senhor, através de uma série de despojamentos interiores, sempre mais sofridos e radicais. O Senhor lhe ordena de morar no deserto, onde aprende a se alimentar confiando na providência divina: os corvos trazem o pão e a torrente de água o sacia por um tempo limitado. O Senhor o envia a morar em terra pagã, sustentado por uma pobre viúva em Sarepta (1 Rs 17, 2-24).
O profeta pretende defender Deus com a matança dos profetas de Baal (1 Rs 18, 16-40). Foge para o deserto para salvar-se da vingança da rainha Jezabel, cai no extremo desânimo, o Senhor o socorre alimentando-o através de seu anjo, e o fortalece para cumprir seu caminho até a montanha do Senhor (1 Rs 19, 1-8).
O Senhor o interpela como profeta refugiado na gruta da montanha. Ele se queixa de estar correndo riscos mortais pelo Senhor, e reivindica mais uma vez o feito de ficar sozinho para defendê-lo (1 Rs 19, 10.14). Em resposta o Senhor lhe ordena de “sair da gruta” em que está amparado, para ficar diante dele que está para passar diante dele ( 1 Rs 19, 9-11; 13-14)).
A gruta em que está refugiado, mais que na rocha da montanha, está escavada na realidade em seu pequeno mundo ideológico, onde falta o ar livre da vida e a visão ampla da realidade. O Senhor faz sair Elias deste túmulo de morte, e o faz nascer à vida nova. O murmúrio suave e brando é a habitação verdadeira do Senhor. A sua voz profunda é o silêncio que chega ao coração. Elias pode somente entrever a face do Senhor através do manto que cobre seu rosto, como a mão protetora de Deus cobriu o rosto de Moisés, na montanha do Sinai, para protegê-lo da luz insustentável da sua glória, concedendo-lhe o privilégio de contemplá-lo somente pelas costas (cf Ex 33, 18-23).
Elias sai deste encontro radicalmente transformado (1 Rs 19, 9-14). Recebe a nova missão de promover a vida do povo, em Israel e em Damasco, e de transmitir seu carisma de profeta a Eliseu (1 Rs 19, 15-18). Somente quem tem em si mesmo a vida do Senhor pode transmitir vida.
Iniciada como fuga diante do poder prepotente da rainha Jezabel, a aventurosa viagem de Elias se transforma numa verdadeira peregrinação interior rumo ao centro de si mesmo, mais que uma transferência forçada de lugar geográfico para outro, com a finalidade de esconder-se. Marca o retorno às origens espirituais de Israel a descida do profeta nas profundidades do seu coração, onde encontra a verdadeira habitação do Senhor e a linfa vital da sua missão de profeta ao serviço do Deus da aliança e da vida.
Através da pedagogia, severa e doce ao mesmo tempo, dos progressivos despojamentos de si, o Senhor molda o seu profeta, até fazê-lo digno de encontrá-lo na intimidade e na paz, como supremo dom de graça. Está superada toda manifestação de força que se impõe, simbolicamente expressa pelos impetuosos elementos naturais do vento violento e forte que quebra as montanhas, ou do terremoto e do fogo ( cf 1 Rs 19,11-12). Tais sinais tinham acompanhado a manifestação de Deus a Moisés e ao povo junto do Monte Sinai no momento de estipular a aliança (cf Ex 19,16-24). Desaparece também toda pretensão de fazer-se como defensor de Deus e quase seu protetor!
Deus não precisa de defensores, mas de testemunhas da sua graça e da salvação que vem dele. Testemunhas que, antes de mais nada, sabem escutar o testemunho interior do próprio Espírito do Senhor que fala dentro de nós, nos atrai a si próprio, nos fortalece, e nos sugere o que é importante de verdade a se dizer, diante do tribunal da história ( cf Mt 10, 17-20).
Apreender o caminho espiritual, deixando-nos guiar pelo próprio Senhor e a ser moldados pela sua pedagogia purificadora e libertadora, em tempo de marcado individualismo e protagonismo também na busca espiritual, é uma herança preciosa que nos vem do profeta e do próprio Jesus: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,27).
Enquanto com a fórmula “Sou eu”, Jesus evoca o poder do nome divino (cf Ex 3, 14-15) pelo qual ele domina o mal, como deixam vislumbrar seu caminhar em cima das ondas e a calma da tempestade, ele vai encontro dos discípulos, como um pai que cuida da sua criança assustada, os encoraja, e igualmente encoraja Pedro na fraqueza da sua fé, já que ele segura prontamente em sua mão respondendo a seu grito de ajuda, sobe no barco e a tempestade se acalma.
A tradição cristã reconheceu neste evento, junto com a multiplicação dos pães, a imagem da Igreja na sua travessia ao longo da história, alimentada e sustentada pelo próprio Jesus. Na fé ela sabe e experimenta que Jesus não abandona os navegantes, assim como sabe que é ele mesmo a fortalecer a fé de Pedro e a garantir que o barco alcance seu destino, “para o outro lado do mar”, segundo o projeto de Deus.
Precisamos aprender o estilo da condescendência divina e da sua misericórdia solidária, num tempo em que cada um eleva o tom da voz para deixar-se ouvir, no atual show permanente e confuso das idéias e das propostas, onde se fica acentuando as cores de suas fardas e das suas bandeiras para afirmar seus princípios éticos, políticos, religiosos. Isto significa aprender com o profeta Elias a descer do monte Carmelo, lugar da matança dos profetas, e aprender a peregrinar com ele os duros trilhos do deserto até o monte Horeb, o lugar do encontro no silêncio com o Senhor e com as fontes da verdadeira vida. A mística não fecha a pessoa num mundo vazio, pelo contrário, a constrói com a mesma energia de Deus e a faz capaz de reconhecer e de cuidar do seu rosto divino, presente em toda pessoa e em toda situação.
Estas passagens espirituais e culturais constituem um desafio permanente no caminho pessoal e das comunidades cristãs de todo tempo. É difícil fazer próprio o estilo de Deus e de Jesus.
Depois que ele multiplicou os pães, o povo queria fazê-lo rei, destaca João, como que para garantir a continuidade da bonança material inesperada (Jo 6,15). Jesus, porém, refugiou-se sozinho na montanha, onde, numa noite de intensa oração face a face com o Pai, confirma sua escolha ao serviço do reino. Desta íntima relação com o Pai, ele desce em socorro potente e caridoso dos discípulos. Mas eles mesmos, observa S. Marcos, “ainda não tinham entendido nada a respeito dos pães, mas seu coração estava endurecido” (Mc 6, 52).
A Igreja conhece bem o tesouro da fé que nos anima, embora exposta a tantas fragilidades diante das provações da vida. Por isso nos convida a rezar com confiança o Pai, para que o nosso coração de filhos e filhas seja por ele mesmo fortalecido e alcancemos a tranqüilidade e a intimidade da casa paterna que esperamos: “Deus eterno e todo poderoso, a quem ousamos chamar de Pai, dai-nos cada vez mais um coração de filhos, para alcançarmos um dia a herança que prometestes” (Oração do dia).
A Oração Eucarística VI-B (Deus conduz sua Igreja pelo caminho da salvação) interpreta muito bem esta consciência viva da Igreja e a firme esperança que a anima em seu caminho.
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